segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O LEÃO CONTADOR DE HISTÓRIAS E O PINGUIM SIBERIANO


Após muitos quilômetros caminhando, o leão contador de histórias enfim chegara ao seu primeiro destino: a gélida Sibéria, em território russo (correspondendo a 58% do território russo, fazendo fronteira com a China, o Cazaquistão e a Mongólia).
Claro que para ali andar, sem acabar morrendo, o corajoso leão havia gasto uma fortuna com roupas de frio, e claro, não dispensava umas garrafinhas de vodca pura (tradicional ali na região).
Na primeira manhã siberiana, nosso leão acordara tarde, bem tarde, como de costume (muitas leoas o criticavam por dormir demais, mas sabe como é, aquele peso todo, aquela comilança de sempre, e logo batia a vontade de dar uma siesta – como chamam os animais hispânicos) e fora até a janela do quarto de hotel onde observara uma concentração de animais em torno de um pingüim.
Curioso, o leão contador de histórias decidira ver o que ali ocorria, mas claro, após o farto e suculento café de manhã – a base de muita carne, afinal eram precisos quilos e quilos de proteína para manter aquela fera em pé.
Ao se aproximar do pingüim, que gritava, gesticulava, ao redor de todos aqueles animais que ali pareciam hipnotizados, o leão decidira dar uma chance para o pequeno animal (coitadinho não voa) dizendo a si mesmo “vou escutar um pouco, vamos ver o que ele tem a dizer”.

“Irmãos e irmãs do reino animal. Estou aqui em missão, em missão espiritual. Trago em minhas mãos a mais pura verdade, a única verdade! Aqui nestas páginas estão escritas as mais sábias e belas palavras, escritas por animais como nós, a milhares de anos, porém todos estavam sob inspiração do “Grande Papai-Desenhista”. Aceitem o Grande Papai-Desenhista como único Senhor, e sejam felizes, senão agora nestas geladas planícies, que seja ao lado do nosso Papai no Zoológico Celestial!”
Os animais aplaudiam emocionados, afinal, quem não sonhava em sair daquele lugar frio, gelado, e cair num Zoológico Celestial, aonde amendoins e imensos bifes caiam de árvores garbosas?
O leão assistia aquilo, atônito. “Chega” (pensou o leão), e postou-se mais próximo ao pingüim, como que para iniciar um inevitável, e sempre necessário, debate.

“Olá pingüim”
“Tu não és daqui, de onde vens estrangeiro?”
“Moro em lugar algum, não pertenço a lugar algum, sou um animal imerso no mundo, na existência.”
“Que existência, esta aqui (e aponta para tudo quanto é lado, questionador)?”
“Sim, por que, o amigo pingüim conhece outra existência senão esta aqui, onde estamos frente a frente?”
“Oras, tu não conheces as glórias do teu senhor Grande Papai-Desenhista? Teu celestial Zoológico, sempre de portas abertas para aqueles que lhe aceitam, que vivem segundo os seus sagrados e corretos princípios?”
“Que princípios? Os deste livro velho, escrito por uma diversidade de animais, em diversas épocas?”
“Não blasfeme contra as sagradas palavras inspiradas por nosso querido e salvador Grande Papai-Desenhista. Podes, ao invés de adentrar ao Zoológico Celestial entrar em lugares terríveis, depois desta vida mentirosa. Não temes a Caverna Escura? Aonde o inimigo, o impiedoso Bode Caído nos tortura para todo o sempre?”
“Peraí, você está brincando. Quer me dizer que há um Bode Caído que conspira contra nós? Que nos deseja o mal, e as piores dores?”
“Sim, e vejo que o nobre leão está tomado pela sedução do Bode Caído. Precisas te libertar imediatamente. Aceite o Grande Papai-Desenhista como teu único senhor!”
“Veja bem, pingüim. De onde venho, me tinham como rei. E depois de tempos percebi que reinar, aqui ou em qualquer lugar, não tem valor algum. Nada mais não animal que ousar reinar sobre os outros. Este seu Grande Papai-Desenhista é um tipo de rei, não é?”
“Sim, ele reina no Zoológico Celestial, próximo aos animais corretos e justos”
“Então ele é uma mentira. Ele não liberta ninguém, ele aprisiona. Os reis aprisionam todos a sua volta, transformando em leis o seu relés prazer. Tu e os outros animais aqui estais aprisionados. Quem necessita libertar-se não sou eu, mas todos vós”
“Blasfemador! Não vês que o Bode Caído domina a tua vida!”
“Pare de falar em fantasias. Não há Bodes do mal ou Papai do bem. Só há o aqui e o agora, o instante, a existência.”
“Vais agoniar nas profundezas da Caverna Escura, junto ao Bode!”
“Pelo visto não tens outros argumentos que este velho e anacrônico livro e tuas fantasias metafísicas”
“Não preciso de argumentos, pois trago comigo a Verdade em minhas mãos. As sagradas Palavras”
“Tu confias em teu Grande Papai-Desenhista?”
“Sim, ele é meu senhor.”
“Então, lhe proponho o seguinte: se tu estás com a verdade, se tu és protegido e ungido de tantas graças por seu Papai como dizes, certamente que tu não só não temerás como também me derrotarás em um combate. Concordas?”
“Ohhhhhhhhhhh”, todos os animais em torno olharam para o pingüim, esperando ver como o seu líder iria agir diante do desafio do infiel, blasfemador, leão.
 “Tudo bem leão. Como é um infiel, tu não sabes, mas há uma história sagrada, aqui neste sagrado livro do qual desdenhas, onde uma formiga fiel vencera um tiranossauro infiel, como tu. Como o Grande Papai-Desenhista esta comigo, vou derrotá-lo e demonstrar a todos aqui como a nossa fé nos recompensa, nos conduz a vitória contra o mal, e como, antes de tudo demonstrar que aquele que crê está entre os vencedores, sempre”
“Certo pingüim.”
“Espere um minuto.” O pingüim abre o livro e entoa, perante os animais, uma espécie de canto em devoção, como que para “Livrá-lo do mal, amén”
“Podemos começar a batalha? Preparado?”
“Sim, infiel”

O leão contador de histórias, humilde, deixou que o pingüim lhe desferisse o primeiro golpe, a fim de ver qual a real força que ele representaria. O leão riu, riu, pois nada, nada sentira, após o golpe desferido pelo pingüim.
“Que estás rindo?”
“Tu queres prosseguir com isso pingüim?”
“Sim, o Grande Papai-Desenhista está comigo, tu vais ceder, tu vais cair, infiel”
O pingüim desfere mais um golpe, e tantos outros, até começar a mostrar cansaço. E o leão, ria. Só ria. Nada sentia.
“Melhor desistir agora pingüim. Tu não reúne mais forças, e olha que eu nem sequer sai do lugar, não lhe encostei um único dedo”
“Tu não vês? Meu senhor é que estas te impedindo de me atacar. Tu não me atacas porque meu Grande Papai-Desenhista estas intervindo por mim, dizendo pouco a pouco a você que nada podes fazer contra mim”
“Pois bem, vou provar agora a você que estás equivocado”
Em seguida o leão, com toda fúria, força, velocidade, estripou o pequeno pingüim em questão de segundos. E como é da natureza de um leão, da voracidade de um leão, ele em seguida comera os restos do pingüim, diante de todos os outros animais que em êxtase gritaram:
“Aleluia Senhor, salve o nosso santo pingüim, mártir dentre os mártires. Que o Zoológico Celestial o receba de braços abertos”

O leão, vendo que a ignorância era total entre aqueles animais, simplesmente desistiu e voltou para seu hotel, onde amanhã sai em direção a outros lugares do mundo.

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